Conclusões e retomadas
Com as duas apresentações no dia 16 de fevereiro encerram um ciclo do projeto Huguianas, o primeiro depois da Pandemia.
Depois de sua aposentadoria compulsória em 2009, Hugo, para manter o vínculo com a Universidade, começou a desenvolver um treinamento para atores ministrado semanalmente, no qual ele trabalha fundamentos que orientaram sua carreira como diretor e professor de teatro. Durante sua estadia na Unb, Hugo era responsável por cursos de entrada e de conclusão: havia Obac 2, oficina básica de teatro, no qual se expunha os estudantes aos seus limites psicofísicos, o que determinava que tomassem escolhas, escolhas profissionais, estéticas e existenciais. Nas disciplinas de fim de curso, Interpretação 4 e Diplomação o foco era em montagens, no qual se pensava do texto à encenação. Assim, temos duas experiências diversas: treinamentos intensos em fundamentos da linguagem e uso desse treinamento em montagens.
Comecei a trabalhar nesse projeto de aposentadoria do Hugo quando ele dividiu seu foco: a partir de 2011, com os alunos das primeiros treinamentos pós apossentadoria, Hugo formou a companhia ATA , Agrupação teatral amacaca; depois, ele continuou a ministrar disciplina semestral de treinamento de atores. Eu passei a trabalhar junto com ele nas disciplinas, como um compositor em cena. Daí nasceu o projeto do LADI "Um compositor na sala de ensaios".
Nosso objetivo inicial era alternar turmas de treinamento com turmas de montagem. Conseguimos isso com o processo criativo de Salomônicas, apresentado duas vezes, em 2016 e 2017, último trabalho que fizemos juntos.
Quando da morte de Hugo Rodas em 2022, juntei alunos, amigos e colegas e juntos fizemos Eu Luto (2022), um espetáculo que já explorava algumas das coisas que passamos a colocar em prática no novo projeto Huguianas, como a presença de música tocada ao vivo, dramaturgia em móbile e o trabalho de coro.
Para Eu Luto (2022), escrevi materiais não utilizados aos quais voltei e ampliei, a partir de questões do contexto sócio-político: as eleições de 2022 pra presidente e o ataque de terroristas em janeiro de 2023.
Para este semestre, que se deu entre novembro de 2022 e fevereiro de 2023, tivemos um arco de atividades: começamos como uma oficina de treinamento de atores e depois, a partir de janeiro de 2023 partimos para erguer cenas e construir um espetáculo.
Nesse processo uma das coisas que foram alteradas foi a função do coro. Inicialmente para construir esssa disposição, esse estado coral os exercícios foram propostos para performances individuais, duplas, trios, pequenos grupos e todo o coletivo. Com mais de trinta artistas/estudantes no teatro e sua diversidade de técnicas, expressividades e formações, os exercícios funcionaram como o único horizonte de interconexão.
Assim, no lugar de uma homogeidade abstrata, o que se procurou é ampliar o repertório de ação e compreensão das corporeidades em movimento. Cada um ao mesmo tempo fazendo as mesmas coisas não deixa de ser quem é, mas inclui-se em algo que é compartilhada: a troca de sensações, observações, ações físicas visíveis e audíveis. A comum-unidade formada não se baseava em enfatizar o uno, a unificação , e sim o comum, o que aos pouco era construído e comparticipado. De fato, as diversas formas de engajamento, participação, interação, interesse na sucessão de encontros definiram o grupo. Cada um tem sua história, seus conceitos, suas experiências, suas vivências, seus repertórios. No caso de nossos encontros, o mais importante não era reforçar o que já havia, mas integrar cada um no comum compartilhado das trocas multissensoriais. É dessa maneira que se reforça o dispositivo coral como uma mediação entre o individual e coletivo. O coro não é a soma de indivíduos para resultar em uma massa, um grupo. Nem é a expressão unilateral de um todo que se impõe a cada elemento.
Assim, cada turma vai gerar seu próprio coro, com características específicas, cada trabalho criativo coletivo vai gerar sua comum-unidade.
A partir de janeiro de 2023, com a decisão coletiva de nos apresentarmos na mostra semestral Cometa Cenas, foi que esse o dispositivo coral foi articulado, demonstrando a complementaridade entre os exercícios de sua construção e o espetáculo.
De início, fomos trabalhando ao mesmo tempo cenas de textura binária (1X1) e cenas de grupo. Essa dicotomia organiza o espetáculo Mânei(2023), mas ela é só aparente: mesmo que haja uma primeira sequência com sucessão de cenas de duplas e depois há cenas de grupos, todos estão em cena, tudo emerge do grupo. Essa é a partir mais difícil de se trabalhar e não houve tempo: desenvolver uma compreensão do coro em ação mesmo quando ele está em segundo plano.
Vamos ver como foram as aproximações entre coro e cena a partir da análise das apresentações de Mâney. Para tanto sigo o registro em vídeo.
O vídeo começa com a entrada do público. Dentro da sala, todos os intérprete em grupo cantam a palavra-título do espetáculo: Mâney!!! Eles estão no canto extremo da sala, em oposição à frontalidade da plateia, que vai se sentando enquanto há canto em looping. O coro se dispõe em indivíduos muito próximos uns dos outros. Cada um faz seus movimentos e cantam. Há uma dualidade entre estarem no mesmo lugar e fazerem diversos movimentos. O canto é em uníssono. Enquanto há o fluxo de cantos, alguns emitem palavras em contracanto e sons de percussão soam - um bumbo e pandeiro. Nada foi escrito ou estabelecido: não há divisão de vozes, arranjo para percussão e outros instrumentos. Um fluxo de canto e movimentos diversos é entoado sob uma base harmônica na guitarra (A, D, G ...) O groove com pouca distorção procura manter um pulso, como referência para afinação e as palavras cantadas. Depois que as pessoas entram e estão todas sentadas(1:30), o coro começa a se deslocar, enfatizando a relação entre canto e contracanto. O coro se desloca para uma posição central, o meio entre o fundo da cena e seu extremo. Nessa posição central, o coro passa a fazer evoluções, como dobrando-se sobre si mesmo, uma coluna circular, girando. Assim, a estrutura em looping do canto dialoga com o giro em volta de si.Ao fim o coro para em frente da plateia, mão esticadas e abertas. Palmas (2:28).
Essa primeira seção da peça introduz o grupo que vai realizar o espetáculo. Como um párodo, o coro atrai atenção de todos, manifesta-se como o centro focal da cena. Ele não vai mais sair da visão do público.
Algumas questões aqui: durante os ensaios tivemos de enfrentar algumas dificuldades básicas na construção de cenas coletivas. Primeiro, se temos um grupo de pessoas esse grupo tem de soar na intensidade de sua presença. Não se pode ter um grupo de trinta pessoas soando como nove. Para tanto, desde o início, exercícios de exaustão são fundamentais para que haja o desenvolviemento de um tônus coletivo. É preciso fortalecer uma resistência coletiva a atos intensos. A partir disso, não basta um momento intenso e outros fracos. Um problema do coro é a continuidade desse tônus, é o tônus mesmo, que é um estado energético que dura além do instante de sua execução. Se isso não acontece, o coro pode desmoronar, soçobrar, desaparecer como coro. Quando o coro sai de sua situação movimento no lugar para o deslocamento há outro obstáculo: ao se colocar em deslocamento, o coro adquire nova conformação. Uma coisa é seu agrupamento, com movimentos mais nas mãos e na cintura. Outra coisa é um grupo de intérprete em marcha. É preciso saber para onde ir, como ir. Há a música. O que fazer enquanto me desloco?
Flávio bem indicava que mais que marcar, era preciso cada um ocupar sua presença. Havia indicações gerais na sequência dos atos: começa aqui, vai pra ali e termina aqui. Havia sugestões de atividades a partir do material apresentado. Mas essas decisões durante o ensaio incluídas para a montagem precisavam de simultâneo olhar e ouvir para os outros e para si mesmo.
Durante os encontros prévios, todos éramos intérpretes e realizados, atores e plateia. A consolidadação do dispositivo coral reside na abertura ao estamos juntos, pela modalização de nossas atividades: uma hora sou eu que faço, outra eu que observo. O desdobramento personativo do intérprete lhe faculta a capacidade de comparticipar. Só estou no todo pois eu mesmo me multipliquei.
Assim, tipicamente temos na abertura do espetáculo uma trabalho de grupo, uma cena coral. Isso quer indicar que fizemos tudo juntos, que estamos juntos e que vamos nos mostrar juntos.
Haveria outros modos de fazer esse início coral, mas o que se performa é o que se fez. Poderia haver divisão de vozes, acrobracias, um outro arranjo instrumental. Mas há o muito com o pouco que temos. E o que temos somos nós mesmos, a nossa experiência comum.
Temos uma base harmônica em looping, um riff harmônico, recurso bem utilizado durante os momentos de aquecimento dos ensaios. Mas no lugar de suas variações, o riff aqui é apresentado como um metrônomo, maquinal, em oposição ao anti-exército composto pelo coro.
Importante é perceber que a abertura apresenta tanto para o público quanto para os intérprete a decisão tomada durante seu processo criativo de enfatizar um coletivo como ponto de partida e chegada de tudo que for performado. O coro se mostra e mostra o título da peça. E o mostra em seus cantos e movimentos. Não há uma coreografia pois não há uma música organizada em diferentes blocos ou partes (estrofes). O coro é maior que o texto, que a mensagem. Pois a mensagem é o coro, o grupo. Assim, este coro encontra-se primitivamente ligado ao mundo do espetáculo e não a uma trama pois ele se mostra como portador do que é básico para a peça e para o coro: uma palavra, uma ideia, um som, que vão ecoar.
Desse modo a questão da integração do coro ao espetáculo se faz ao se expor agentes que cantam e se mostram brevemente nesse canto repetitivo, que é um grito, um chamado, um desabafo, um anúncio, uma indicação.
A palavra "Mânei"entra no tema acordado para o semestre: explorar esse incremento de desejos de querer mais, de ganhar, de acumular. Essa obsessão de posse que a muitos possui se manifesta em temas que não são apenas domínios da moral religiosa. A palavra inicial era grana- palavra latina que nos veio pelo italiano, e que se associa a grão, fazer dinheiro com o negócio dos grãos. Muitos grãos, muito dinheiro. Daí a cobiça, o individualismo.
Para mim ficou claro que esse tema se associava também à tresloucada carreira da extrema direita, que vomita comandos de ordem, pátria família e deus, mas no fundo lucra com suas propostas. As campanhas morais como fachadas de empreendimentos de enriquecimento.
Não houve texto para a primeira canção do coro. Essa anti-canção sem frases e desenvolvimentos, sem atividade multisetorial, ao fim é a enfática reafirmação do fundamento predominante na compulsão capitalista de hoje. Grana, mais grana, e mais fácil, mais e do modo mais fácil.
Veja entrevista com Hugo Rodas.
https://atarde.com.br/muito/hugo-rodas-e-hora-de-parar-de-entreter-as-plateias-809643
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