A Baleia- dramaturgia e outras ideias

Fechando este blog, gostaria de encerrar com umas reflexões a partir do filme The Whale, de Darren Aronofsky.
O filme é baseado em uma peça homônima do dramaturgo norte-americano Samuel D. Hunter, que a adaptou para as telas. Essa correlação entre dramaturgia, cinema, teatro e música é o que pretendo discutir, sempre pensando nos processos criativos nossos, a partir das atividades de Huguianas.
Hugo Rodas pensava como um diretor de cinema. Ele me falou várias vezes que imaginava as suas montagens como um filme na sua cabeça. Cresceu com o cinema, era um cinéfilo, e fazia uma direção de cena como se organizasse uma obra cinematográfica.  Esse hibridismo entre teatro e cinema torna compreensível um tanto sua obsessão pelas marcas, pelo espaço, pelos gestos, como a feitura de algo para ser visto por alguém. 
A teatralidade de The Whale é ostensiva: a maioria dos acontecimentos se dão dentro de um espaço interno ao apartamento de Charlie. A clausura de Charlie em sua obesidade mórbida incrementa a sensação de limites, privações, e suas contrapartidas afetivas e dramáticas. Aos poucos vamos sabendo mais desse mundo fechado e quanto mais sabemos mais inexorável é o limite do limite - que é a morte. 
Nesse progresso paradoxalemnte da circunscrição, até que não haja mais nenhuma alternativa senão morrer, outras personagens adentram a cena, referidas ou presentificadas. Temos a trágica figura de Liz, enfermeira e irmã do falecido namorado de Charlie - ela, que pode curar, vê-se entre a renovação da morte, ao ter cuidado sem sucesso de ser irmão, e agora ser companheira da jornada da autodestruição de Charlie.  O namorado falecido é o futuro de Charlie: alguém que aos poucos morre, só que de modo inverso: o namorado cessa de comer, o câncer que o devora. Charlie come para morrer. 
Na primeira cena,  temos o protagonista sendo interrompido em sua solidão erótica e quase mortal quando um desconhecido missionário, Thomas, bate à porta e adentra o apartamento. Jovem, ele terá vínculos com outra personagem que vem de fora: a filha de Charlie: Ellie. Para ela, todos os sonhos de Charlie fluem. Ajudar Ellie é a redenção de Charlie; será, segundo ele, a única coisa boa que fez na vida. 
Para esse devaneio de bondade e remissão, contra o fracasso existencial absoluto,  rumam boas memórias: a redação da filha sobre o livro Moby Dick, de Merville e um dia em família na praia. 
Imediatamente, as alusões dialogam com o presente da cena: um imenso Charlie, com dificuldades de se movimentar, de vida fora daquele lugar, fundem-se com as imagens da grande baleia branca assassina e assassinada e um belo dia na praia. Os sons do mar e a trilha instrumental inserem o apartamento em um amplo mundo aquático, um grande oceano. Chove lá fora constantemente. Águas sobre águas.

Após uma série de revelações, a irreversibilidade do destino de Charlie enfim chega a seu climax. Na cena final, o plano da situação imediata da cena e o plano imaginário se fundem: o gigantesco Charlie paradoxalmente ergue-se de sua cadeira e parece voar para aquela praia distante, para aquela brisa, para aquela liberdade sonhadas. Ele pela primeira vez parece sair de onde está, de deixar de ser quem ele se tornou. É sua bela morte. Corte. O filme acaba;  Charlie em êxtase e tudo suspenso, como o caos detido no momento de se ultrapassar. A tela preta finaliza nossas expectativas de acabamento: não vemos o que aconteceu depois. Ficamos com as imagens e sons da casa-baleia, do mundo-oceano, do grande Charlie. Esse corte abrupto nos desliga da obra e nos remete para algo além do que foi mostrado. O filme não acaba no fim. Mais que as incertezas, temos que ver que há algo grande, maior que a tela, tão grande quanto a vida. 
Não se trata de uma narrativa simples, de uma única linha de desenvolvimento da trama. Todas as vidas são reunidas no filme e atravessadas pela figura de Charlie. Todos somos potenciais baleias. Uns vivem para morrer e correr. Outros para testemunhar o fim de tudo. A obesidade, a baleia, o gigantismo, a perda de controle, tudo são metáforas que se entrecruzam.
Isso me vem à mente ao discutir sobre dramaturgia. Saí do filme renovado, não pela desgraça alheia saboreada ou deglutida. Saí de lá renovado por ver uma dramaturgia poderosa que sabe bem que o que fazemos é mais que nos delimitar em nós mesmos, e contar nossas dores para nos confirmar. O Charlie que tudo devora é intragável. Mas ele não é uma pessoa. É uma personagem que é feita por uma pessoa, por um profissional da arte de interpretação. E tudo possível por um texto que sabe como transformar algo que não é uma tragédia, um material que poderia ser patético, em uma obra de arte. 
A diversas escolhas entre a trama das personagens, as imagens, os sons, tudo se encaminha para um uso de consciente de procedimentos dramatúrgicos, que se desviam do senso comum, de soluções fáceis, imediatas. 
No núcleo disso está uma defesa da escrita, do ato escritural. Charlie é professor de redação. Nas sociedades ocidentais o ensino curricular da expressão escrita tornou-se um fardo, uma aplicação de regras e presets. Você aprende a escrever, mas não a se expressar. Há caminhos para se escrever, mas não para se inscrever na página. A redação de Ellie foi como um alento para Charlie. A história da baleia na perspectiva da aluna. Ellie se conectou com o livro. Isso é uma milagre da vida: dialogar com os livros, com as palavras dos outros, com a voz dos que já não estão aqui. Há alguém, há um outro. O outro de nós mesmos. Eu sou um outro de mim mesmo. Eu me expresso melhor sobre mim, eu me liberto dos constrangimentos sociais de não me conhecer quanto eu ouço, leio as histórias dos outros. 
Há ainda dramaturgia no mundo. Viva!




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