Entrevista de hugo, em 2016

"O mais incrível é que cheguei com uma proposta nova, que era a junção da dança, da interpretação e da música em um só instrumento, o corpo."






A sua história em nosso país começa pela Bahia. Como se deu esse encontro e o que o levou a trocar o Uruguai pelo Brasil?

Fui convidado, em 1974, junto com um grupo de Montevidéu, a participar da 8ª edição do festival de inverno. Eu já conhecia toda a turma de dança da Bahia, e Clyde Morgan, que era diretor da Escola de Dança da Ufba, me convidou. Foi uma experiência inacreditável. Sempre digo que o impacto que me causou o tango foi o mesmo que me causou o samba. Cheguei a voltar ao Uruguai, mas decidi que não ficaria. No final daquele ano, em dezembro, peguei um voo para a Bahia. Imagina o que era a Bahia em 1974? Era absolutamente maravilhosa, um paraíso, fora da realidade de qualquer ser humano. Foi o lugar onde me descobri totalmente, onde descobri o meu animal, onde me encontrei na minha essência mais intrínseca.

O senhor mora em Brasília desde 1975, como se deu essa mudança?

Por casualidade, no ano seguinte, quando já estava morando e trabalhando em Salvador, dando aulas no Icba, Clyde Morgan foi convidado a dar um curso em Brasília. Como não poderia ir, ele me pediu que fosse em seu lugar. Eu tinha dois amigos diplomatas, que havia conhecido em Montevidéu, e decidi ir conhecer aquela cidade, que ainda era um mistério. Quinze dias depois, quando chegou a hora de retornar, fui convidado a ficar. Me deram uma equipe de 50 pessoas e um emprego. Como nada me prendia, a não ser a paixão por Salvador, fiquei, e isso mudou a minha vida. Embora não me considere brasileiro, sou muito candango, muito mesmo. Nasci numa cidade chamada Juan Lacaze, próxima a Colônia Del Sacramento, e o santo protetor dela, Dom Bosco, é o mesmo de Brasília.

Qual a cena teatral que o senhor encontrou no Brasil naquela época?

Era forte, havia muitos grupos. O mais incrível é que cheguei com uma proposta nova, que era a junção da dança, da interpretação e da música em um só instrumento, o corpo. E todos me chamavam para trabalhar. Chegou um momento em que formamos um grupo único, o Pitu, e estive com ele em Salvador, ainda em 1975, com uma montagem de Os Saltimbancos. Foram anos de uma troca de informações riquíssima.

Que paralelos o senhor considera possível traçar entre a cena teatral que encontrou em 1974 e a cena atual?

Muito parecida, por incrível que pareça. Há uma força que nos mobiliza hoje que é também histórica, e isso nos leva a ocupar posições de modo mais expressivo. Só que, esteticamente e socialmente, somos muito diferentes. Nos anos 70, havia um movimento revolucionário. Hoje, tudo é muito mais... Mas creio que a força voltará a ser colocada no teatro gestual, que é onde encontramos abrigo quando a palavra é censurada. Uma vez mais, acredito que estamos caminhando para isso, para um fortalecimento das artes. É a hora de parar de entreter as plateias. Há dez anos estamos entretendo plateias, em lugar de mergulhar em trabalhos mais densos, em espetáculos socialmente mais profundos.

Em Ensaio Geral, que o senhor trouxe à Bahia, há uma discussão sobre o amor. O amor é ainda revolucionário?

Sim. Eu propus a cada ator que escolhesse onde colocar esse amor. Porque o amor não precisa estar necessariamente no romântico. Alguns colocam o amor na política, outros na humanidade, outros no sexo ou dentro de um estado rebelde, existencial. E, assim, foram surgindo os textos de autores como Charles Chaplin, em O Grande Ditador, de Hilda Hilst, de Drummond...

O senhor falou, antes de começarmos a entrevista, sobre a caretice, sobre o retorno da caretice. Como vê, nesse sentido, a contemporaneidade?

Ah, mas eu, você, todo mundo, todos estamos muito caretas, de algum modo. Mas penso que há uma estética que nos obriga a isso, e que é preciso que aconteça justo o que está acontecendo agora, que é dar uma sacudida geral. Há que sentir a pobreza de novo, e a humildade e a vontade de vencer a inércia, há que ser desafiado, e não entreter plateias burguesas e a não criar quadros apenas para que sejam pendurados em paredes. Temos que deixar de ser consumidos e consumistas.

Muitos comentam sobre uma onda de repressão, ainda que sutil, que impõe o retrocesso em alguns aspectos.

Totalmente. Há uma onda de repressão terrível, e é uma onda de repressão santa, que atinge até a educação. O que está acontecendo é uma loucura, pois são anos e anos de lutas e conquistas para termos um companheiro, uma companheira, ou o amor livre, o que também é digno. Mas penso que tudo foi aceito apenas porque viramos papais e mamães, entendeu? Nos encaixamos no padrão daquilo que a sociedade quer, nos padrões de conduta considerados aceitáveis. Deixamos de ser revolucionários. Hoje, sentamos num bar e temos que brigar com os amigos para que eles estejam verdadeiramente presentes conosco, para que eles não fiquem falando com outras pessoas no WhatsApp. Tudo isso, todos esse aparatos, nos adormeceram. E é a isso que precisamos reagir.

O senhor falou, em uma entrevista antiga, sobre a função da crítica teatral. O que pensa sobre a crítica feita hoje?

O problema é que a crítica contemporânea caiu nas mãos de pessoas, vindas do teatro ou não, que veem os espetáculos e comentam sobre eles, destacando aquilo que fariam e não aquilo que foi feito pelo diretor, não aquilo que funciona ou não naquele espetáculo. Não me interessa saber como eles fariam aquilo que eu fiz. Dizer o que fariam naquele espetáculo é de uma mediocridade espantosa, porque fazer tudo como todos fazem, seja aqui ou seja na Patagônia, é de uma mediocridade espantosa. Infelizmente, a globalização nos levou à reprodução em série daquilo que faz sucesso.

Não se ousa nada diferente?

Nada. A informação em excesso nos levou a um estado de não pensamento, a um apreço pela reprodução, pela cópia.

O que falta? Coragem?

Não. Penso que seja uma época, o reflexo de uma época. Não nos falta coragem, nem mesmo ousadia. O que acontece é que está tudo dominado. Está tudo dominado, como diz a letra do funk (risos). Há um denominador comum.

No espetáculo Rosa Negra, de 2011, havia uma forte pesquisa das raízes nordestinas e da literatura. Seria um caminho?






Sim. Acabei de terminar os ensaios de uma peça baseada num livro de Luiz Bernardo Pericás, Cansaço, que nós rebatizamos de Punaré e Baraúna. Devemos entrar em cartaz, em breve, em São Paulo, no Oficina. Voltamos à música regional, às raízes, ao trabalho com a terra.

Já em O Verde Alecrim, o tema era a corrupção. Como o senhor vê a corrupção em nosso país?

Precisamos rever a culpa que cada um tem, para corrigir isso, porque começa por uma questão de comportamento. Quando começamos a trabalhar em teatro, nos anos 70, nunca ficamos num hotel. Hoje, as pessoas mal iniciam a carreira e já querem isso. Porque sonhamos com essas coisas? Essa é a questão.

O senhor tem 77 anos e continua em atividade. A idade atrapalha?

Não atrapalha, mas devemos tomar uma atitude diante dela, porque a idade faz com que nos acomodemos. A única forma de não sentir-se velho é manter a mesma conduta de quando você ainda era jovem e lutava contra as coisas. Não me interessa viver da aposentadoria, me interessa lutar pelo dia a dia.

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