Composição em performance vs improvisação

 Esta postagem é para explicitar um pouco o que faço durante os ensaios. Lembrando, é claro, que isso não é instantâneo, não nasceu agora. Acho mesmo que  essas duas coisas se relacionam: a minha história em relação ao teatro/música e essa prática de um compositor presente aos ensaios.

Pois vamos por partes. Primeiro, diante dos intérpretes, eu os observo e fico de olhos e ouvidos abertos para a condução do ensaio, no caso o Flávio. Seguindo a estrutura dos ensaios, começamos com um aquecimento. Para o aquecimento tenho que prover dois tipos de materiais - um "mais agitado" e outro para "relaxamento". Em música essas duas referências podem ser traduzidas de diversas maneiras. Eu procuro algo mais em acordes, no estilo de um groove, com andamento mais acelerado. Começo por algo mais consoante, e uso o meio do braço do violão e não coloco muita distorção. Traduzindo: começo em uma região de sons médios, não muito graves ou agudos, para estar sintonizado verticalmente com os corpos que vão se movimentar. O groove é um padrão rítmico que dá uma certa identificação a um determinado estilema sonoro - baião, regaae, samba, etc. Essa é um técnica muito usada por compositores/arranjadores norte-americanos, com os quais estudei a partir de curso de arranjo e orquestração que fiz na Berklee.  A escolha por sons consonante ou dissonantes é uma maneira de se valer das possibilidades que diversos escolas de composição facultam. Isso dá uma versatilidade para o compositor.  O andamento é muito importante, pois há um vínculo entre o andamento e respostas físicas do ouvinte e do músico.  Temos batidas no coração, e batidas rítmicas. Como o pulso pode ser modificado, também as batidas do coração podem ser acelaradas ou desacelaradas.  No caso, eu acelero o pulso para ampliar a intensidade da movimentação dos intérpretes. E também funciona como recursos para me concentrar mais no que estou fazendo e ao mesmo tempo entrar mais em estado de interação com os intérpretes. A este movimento rítmico de aceleração, segue-se o movimento contrarítmico da desaceleração. 

Depois, temos as cenas ou momentos de trabalho com as técnicas.  A partir daí tenho alguns intervalos mínimos de tempo para tomar decisões. Enquanto o condutor do ensaio fala, dá as direções eu traduzo mentalmente e no instrumento o que tais referências serão transformadas em som. Tenho várias decisões a tomar:

1- tipo de pedal a utilizar

2- frases ou motivos a construir

3- se vai ser mais dissonante ou mais consonante

4- que referências harmônicas 

5- se vai ser um abordagem cordal ou melódica

Em seguida, passo acompanhar os movimentos dos intérpretes, produzindo sons durante o tempo em que eles fazem suas escolhas actanciais. Veja, estamos diante de escolhas de possibilidades. Há infinitas maneiras de se agir e sincronizar é uma possiblidade apenas. Ou seja, no lugar de uma ideal sincronia exata, o que temos são momentos paralelos que podem ou não se aproximar. Melhor pensar isso em termos de tempo. Há uma heterogeneidade temporal irredutível entre os que estão partilhando o mesmo fluxo de espaço-tempo.

Interrompendo essa descrição do que eu faço (sincronia), comento um pouco como cheguei até essa funcionalidade (diacronia). Eu por muitos anos toquei baixo e violão acompanhando alguém (corais, cantores). Toquei em orquestra, tive banda de rock, toquei em bares, etc.  Com minha efêmera banda de rock nos anos 80 do século passado comecei a compor canções, desdobramento meu papel de músico de acompanhamento. Um músico de acompanhamento sabe o que deve fazer ao estabelecer relação com os outros músicos. 

Quando entrei para UnB em 1995, meu trabalho não tinha nada de musical. Eu não conseguia juntar os dois amores de minha vida: texto e música. Meu trabalho era analisar textos teatrais junto da turma, explicar textos para os atores. Desse trabalho comecei a escrever textos para teatro, e nesses textos havia muitas referências a sons. Eram sons imaginários, nunca escritos, nunca tocados, canções nunca cantadas, sons nunca escutados ou produzidos. 

Com o Hugo Rodas, comecei a ter abertura de trazer sons para a cena. O primeiro musical que fizemos em 2002/2003, eu me vali de canções do tempo que tive banda de rock e compus outras durante os ensaios. O processo criativo foi completo: a partir de um texto que foi testado e revisado nas salas de ensaio, as canções foram compostas para os intérpretes daquele espetáculo, que era um trabalho de fim de curso. Eu estava presente a todos os ensaios, pois eu era o playback, o acompanhamento de todas as canções: tocava o violão para os intérpretes cantarem. No final dos ensaios, nos ensaios gerais, foi que conseguimos outras pessoas para tocar com a gente.  Ali, além de cancionista, tive de fazer também música incidental,criar sons entre as canções.

Assim, havia as canções com suas melodias, andamento e harmonia e as outras sonoridades. Mas nada disso era escrito. Eu era um cancionista e não um dramaturgo musical. Era um texto teatro mais canções.  Método aditivo: adicionar músicas a um roteiro já escrito.

Depois de vários desse tipo, fui trabalhar com montagem de óperas e estudar dramaturgia musical. Aí vi minhas limitações. E então fui estudar composição e orquestração, para ampliar minha compreensão das relações entre teatro e cena e, daí, buscar novas formas de expressão e saber o que estava fazendo. 

Determinante foi saber escrever música, colocar no papel, na partitura, o que eu queria com sons.

Com o trabalho com o Hugo, estes Teacs, e agora com o Flávio, para mim é uma oportunidade de um outro aspecto nas relações entre cena e música. O que me define ali é um compositor-na-sala-de-ensaios. No lugar de escrever música antes para os músicos tocarem depois, eu faço sons em interação com os que estão comigo. Não é algo aleatório, embora haja um horizonte de algo que não tenha sido previamente determinado nem será. É comprovisação. 




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